APAC Santa Luzia – Dignidade e ressocialização

Nada de uniformes vermelhos, de agentes penitenciários, de algemas. A disciplina ali é na base da confiança. Literalmente é um pelo outro. “Tudo na APAC é o recuperando quem decide. Ele ganha e ele perde. Se as portas se fecham é o recuperando, se as portas se abrem, é o recuperando”. A frase é de Ronaldo de Souza, recuperando que foi o nosso guia, durante uma visita que fizemos à unidade de Santa Luzia, nessa quinta (27/10), antes do início da missa, presidida pelo Padre Gustavo Tadeu, que foi quem nos convidou para irmos até a unidade, localizada na Estrada Alto das Maravilhas, no bairro Frimisa.

Fachada Apac Santa Luzia
Fachada Apac Santa Luzia

Em  pouco mais de uma hora, o sentenciado nos mostrou as dependências e deu detalhes de como tudo funciona. Ronaldo está na unidade de Santa Luzia há dois anos, após ser transferido da Penitenciária Dutra ladeira.“Escrevi uma carta pedindo para ser transferido pra cá. A juíza aceitou meu pedido”.  Ronaldo é um exemplo de como o método Apac aposta na máxima de que nenhum erro é maior do que o homem. Ele faz pinturas em telas, paredes, também produz mesas personalizadas e cadeiras com restos de madeiras que são doadas. Nos muros da unidade lá estão várias pinturas que ele exibe com orgulho.Assim como os demais, a cada três dias trabalhados, ele tem um a menos na pena.

Ronaldo exibe uma de suas artes na unidade
Ronaldo exibe uma de suas artes na unidade

A primeira explicação dele foi com relação ao “Quadro de Estatísticas” que mostra os números de atendimentos, a população – que hoje é de 100 recuperandos que cumprem pena no regime fechado e 38 no semi-aberto –  além de conter números dos atendimentos jurídico, médico, assistencial, cursos, dias sem fuga, etc.

Na APAC, diferentemente do sistema carcerário comum, os próprios presos são corresponsáveis pela sua recuperação, tendo assistência espiritual, social, médica, psicológica e jurídica prestada por voluntários da comunidade. Os presos têm acesso a cursos supletivos, profissionalizantes, técnicos e alguns casos de graduação, oficinas de arte, laborterapia e outras atividades que contribuem para a reinserção social. Todos estudam à noite e ainda podem ter aula d reforço durante o dia, numa biblioteca bem estruturada, que conta, inclusive com computadores e DVD´s. Mais do que manter os recuperandos ocupados durante o dia e gerar renda para sustentar a instituição, as atividades buscam dar àqueles homens uma profissão, um ofício. Em cada um dos trabalhos, eles são treinados e alocados de acordo com suas aptidões.

Tapetes confeccionados na unidade
Tapetes confeccionados na unidade
Na marcenaria, a madeira ganha contornos e se transforma em arte
Na marcenaria, a madeira ganha contornos e se transforma em arte
Recuperando pinta um quadro que foi encomendado por um viitante
Recuperando pinta um quadro que foi encomendado por um visitante

 

DORMITÓRIOS

 

Divididos em 4 blocos, os seis dormitórios com capacidade para cinco presos cada são organizadíssimos.  Existe, inclusive, um dormitório preparado para portadores de necessidades especiais, caso de um cadeirante, por exemplo. Existem regras que são seguidas à risca por eles: desde a maneira de dobrar as roupas, os lençóis bem esticados e travesseiros, até como podem escutar o rádio: apenas com fone de ouvido. Além disso, nos fundos de cada bloco, ficam as salas de televisão que contam ainda com 3 pias onde os recuperandos utilizam para lavarem as roupas e um bebedouro. “Aqui o canal oficial é a Globo, se estiver trinta aqui, vinte e nove quiser assistir outro canal e apenas um a Globo, assistimos a Globo”, conta um recuperando.

Dormitórios são bem diferentes aos do Sistema Comum
Dormitórios são bem diferentes aos do Sistema Comum
Galerias com os dormitórios
Galerias com os dormitórios

Em cada bloco um recuperando que leva o nome de “galeria” fica responsável por todos os dormitórios. Eles revezam a cada 12 horas. A partir das 22h, todas as luzes são obrigatoriamente apagadas e inicia o horário de silêncio total. Eles também montaram uma rádio que funciona com a seguinte programação: pela manhã, música evangélica, no período da tarde, estilos variados, com exceção do funk e músicas que fazem qualquer tipo de apologia. Instruções e chamadas para missas e cultos, por exemplo, são passadas através da rádio. Cada galeria tem um aparelho receptor ligado.

 

ATIVIDADES

 

De 8h da manhã às 5 da tarde: horário de trabalho, ninguém entra nas galerias. Cada um com suas atividades. Eles revezam na limpeza, cuidam dos jardins e da manutenção, além de produzirem arte. Todo o material produzido fica exposto no Show Room e pode ser adquirido por visitantes a preços que variam de R$20 a R$250. São quadros, carrinhos de madeira, símbolos de times de futebol, tapetes, mesas, cadeiras, chaveiros, entre outros.

Artes expostas no show room
Artes expostas no show room

Na farmácia, dois recuperandos são os responsáveis por entregar medicamentos e suprimentos aos demais, além de controlar o uso de perfumes. Cada frasco contém o nome do recuperando e fica em um armário trancado, já que nos dormitórios não é permitida a entrada. Um dos responsáveis pela farmácia é bem conhecido: *Bruno Fernandes – ex-goleiro, que chegou na APAC em setembro do ano passado, transferido da Nelson Hungria, em Contagem. Bruno está no regime fechado. Quando entramos na farmácia, ele e o colega estava conversando. Me dirigi ao ex-goleiro e expliquei o motivo da minha presença no local. Ele, imediatamente disparou: “Muitos moradores de Santa Luzia não conhecem a APAC e deveriam conhecer. E a única forma de divulgar o trabalho que é feito aqui de ressocialização, de recuperar o homem é através de vocês da imprensa. As pessoas têm que acreditar neste trabalho que é completamente diferente do sistema comum. Aproveito essa oportunidade do jornal para convidar essas pessoas a conhecerem como funciona a APAC”, disse Bruno, condenado pela justiça de Minas a 22 anos e três meses pela morte e ocultação do cadáver de Eliza Samúdio, (desaparecida em 2010) além do sequestro do filho que teve com a jovem. *Em breve, entrevista exclusiva com o ex-goleiro.

 

VOLUNTÁRIOS

Eden Rafael, é um dos voluntários. Ele frequenta a unidade desde a implantação, em 2006. Foi coordenador de voluntários e atualmente passa o dia na APAC nas segundas e quintas-feiras com foco voltado para a religião.

“Na segunda-feira eu trabalho com vinte e oito recuperandos a questão da Viagem do Prisioneiro, que são vídeos com depoimentos e testemunhos de presos que se renderam a Cristo. São três eixos: Quem é Jesus Cristo, porque Ele veio e porque segui-lo. Existem relatos de condenados à prisão perpétua, mas com a liberdade interior espiritual. Estudamos o Evangelho de Marcos, a apostila e assistimos aos vídeos. Não falamos de doutrina, focamos em Jesus”, disse.

Assim como Eden, outros voluntários dedicam algumas horas do dia aos recuperandos. “Eles são como uma família pra gente. Se não tivessem aqui, seria muito ruim pra todos nós”, disse Ronaldo.

Voluntário passa o dia com um recuperando
Voluntário passa o dia com um recuperando

PUNIÇÕES

Quando chega, o recuperando faz um curso sobre a metodologia da APAC.

Existe o CSS – Conselho de Sinceridade e Solidariedade – formado por 11 membros que seguem o Regulamento Disciplinar. Ronaldo explica que 85% da disciplina é do regime, 10% da direção e 5% da juíza. Existem, claro as punições. As faltas disciplinares vão de leve, média e grave. Para cada infração, o recuperando toma um “ponto amarelo”, que o priva, por exemplo de realiza uma ligação telefônica e do lazer, sem direito também à assistir TV no dia. ” Nós temos direito a três ligações telefônicas por semana. (2f, 4f e sábado) com duração de cinco minutos cada. O valor cobrado, a título de manutenção das antenas, é de R$ 2. A unidade conta com dez aparelhos de telefone celular”, conta Ronaldo. Existe também a “Sala da Reflexão”, onde o recuperando pode ficar de 2 a 10 dias. “A gente conversa com o recuperando que está com o comportamento diferente e o convida para a sala. O Gerente de Segurança é informado, avalia a conduta que pode chegar até mesmo à justa causa. Uma vez que o recuperando sai da APAC não retorna mais”, completa Ronaldo.

Ao final da nossa visita guiada por Ronaldo, que é devoto de São Jorge, pergunto um pouco mais sobre sua trajetória, até chegar na unidade. E ele, de pronto, contou. ” Estou condenado a 32 anos de pena. Cumpri cinco anos no sistema comum e há dois anos estou na APAC. No final de 2017 estou passando para o regime semi-aberto com direito a frequentar a UFMG pela nota do Enem que tirei, mas quero fazer o curso de Designer de móveis e Designer de Interior. Quero usar as mãos que um dia seguraram armas para fazer trabalhos que serão reconhecidos pelo mundo”, disse. Ronaldo é filho único, a família mora em Vespasiano e sempre o visita, todos os domingos. ” A dignidade com que minha família entra aqui é o pagamento que eu tenho de cumprir uma pena com respeito e disciplina. Não tem humilhação, não tem nada”, conta. Ele é separado e tem três filhos, cada um com uma mulher diferente. “A minha ex-esposa me largou assim que a pena chegou. Tenho uma filha de cinco anos que não conheço. Tive ela no sistema comum nas suítes íntimas. Tenho uma filha de 18 anos que me acompanha desde os 11 anos de idade e tenho um filho que a última vez que eu o vi, ele tinha cinco anos de idade, hoje tem doze. Eu tive uma vida muito transtornada, porque a droga ela transforma e abandonei minha família”, lamenta. Para finalizar, Ronaldo fez questão de repetir uma frase dita pelo fundador da Apac, Mário Ottoboni “Se fosse possível examinar o homem por dentro e por fora, ninguém se diria inocente” e completou “Me julgar que cometi um crime um dia é fácil. E se você julgar você mesmo, será que não cometeu nada de errado? Aqui o homem entra, o delito fica lá fora. Dentro da APAC não tem criminoso, tem novos homens. Essa casa é protegida por Deus”, finalizou.

 

BINGO

Em novembro, será realizado um Bingo aberto à população, onde serão expostas as artes que são produzidas na unidade. Algumas prendas já foram doadas. E a população ainda pode doar. Basta entrar em contato com a unidade.  A verba arrecadada com o bingo será revertida para a confraternização de final de ano.

APAC SANTA LUZIA

A APAC Santa Luzia, que leva o nome de FRANZ DE CASTRO HOLZWARTH chega em 2016 a uma década de funcionamento. O atual presidente é o engenheiro Gustavo Salazar. O vice, Hilton Pena, morador do bairro Frimisa.

Associação de Proteção e Assistência ao Condenado – APAC – é uma entidade civil de direito Privado, sem fins lucrativos, com personalidade jurídica própria, dedicada à recuperação e reintegração social dos condenados às penas privativas de liberdade. Ela figura como forma alternativa ao modelo prisional tradicional, promovendo a humanização da pena de prisão e a valorização do ser humano, vinculada à evangelização, para oferecer ao condenado condições de se recuperar. Busca, também, em uma perspectiva mais ampla, a proteção da sociedade, a promoção da justiça e o socorro às vítimas.

FRANZ DE CASTRO HOLZWARTH

No dia 18 de maio de 1942 nascia, em Barra do Piraí, Estado do Rio de Janeiro, Franz de Castro Holzwarth. Ao terminar o ensino médio, mudou-se para Jacareí-SP, onde iniciou o curso de Direito. Em 1965, Franz foi trabalhar como Assistente de Administração do Juízo de Direito de Jacareí, e no dia 14 de julho de 1968, iniciou sua carreira jurídica.

Franz foi convidado para evangelizar os presos e prepará-los para a Crisma. Foi aí que ele encontrou sua verdadeira vocação: trabalhar com os condenados. Em 1973, Franz ingressou na APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). Desde então, seus esforços, o seu tempo e tudo em sua vida foi dedicado a esse apostolado.

Mesmo sendo um profissional bem sucedido, optou em viver de maneira simples e humilde. No dia 14 de fevereiro de 1981, durante uma rebelião em Jacareí, ele e Mário Ottoboni, foram chamados para intermediar as negociações. Alvejado durante um tiroteio, morreu junto com cinco rebelados e um policial.

 

FUNDADOR DA APAC

Mário Ottoboni, natural de São Paulo, fundou a primeira APAC em 1972, em São José dos Campos . Advogado, estudou Ciências Sociais e Psicologia, autor de vários livros.

Ele desenvolveu um trabalho junto aos presos da única cadeia existente naquela cidade.

Deixou de lado sua profissão, como fonte de renda, e passou a assistir juridicamente, sem honorários, os presos pobres que são maioria da população prisional brasileira.

A inexperiência no mundo do crime, das drogas e das prisões proporcionou a criação de uma experiência revolucionária – a APAC. A sigla APAC significava Amando o Próximo Amarás Cristo.

No ano de 1974, a equipe que constituía a Pastoral Penitenciária, concluiu que somente uma Entidade Juridicamente organizada seria capaz de enfrentar as dificuldades e as vicissitudes que permeavam o dia a dia do presídio e assim foi instituída a APAC – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados.

 

Texto e fotos:Ramon Damásio/Virou Notícia

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